quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Diário de Caminhada - ETAPA XIII: Amarante - Felgueiras

“Da nossa casa a Santiago de Compostela”,

Etapa XIII: Amarante - Felgueiras
17 de Novembro de 2013, domingo

Caminhantes: Anselmo, Benvinda Monteiro, Carlos Matos, Fernando Gaspar, Fernando Micaelo, Guida Mendes, Jaime Matos, Joaquim Branco, Luisa, Paula Marques, São Branco, Zé Manel Machado. No apoio, Piedade e João.

Sinopse:

Inicio em Amarante: 08:35 horas
Distância percorrida: 21 km
Tempo total de caminhada: 07:12 horas
Tempo a andar: 05:34 horas
Tempo parado: 01:38 minutos
Velocidade média: 4,3 km/h
Da cota de 68 metros para 306 metros
Altitude máxima: 412 metros
Subida acumulada: 528 metros
Descida acumulada: 285 metros

Povoados e locais de referência ao longo do percurso: S. Gonçalo, Stª Luzia, Vinha, Pinheiro, Estradinha, Freitas, Telões, Castanheira, Redondo, Lixa, Caramos, Moure, Felgueiras.


Acumulado:
Caminho: 325,2 Km
Bacias hidrográficas: Tejo, Zêzere, Mondego, Távora, Varosa, Douro, Tâmega, Vizela/Ave.
Distritos: Castelo Branco, Guarda, Viseu, Vila Real, Porto.
Concelhos: Castelo Branco, Fundão, Covilhã, Belmonte, Manteigas, Guarda, Celorico da Beira, Trancoso, Aguiar da Beira, Sernancelhe, Moimenta da Beira, Tarouca, Lamego, Peso da Régua, Mesão Frio, Baião, Amarante, Felgueiras. 

Fonte: GPS de Joaquim Branco
(ver track aqui



O Tâmega assistiu sereno ao nosso acordar. Impávido, testemunhou a surpresa que nos fizeram a Alexandra, o Luís e o Daniel, da Associação Viver Canadelo e Serra do Marão (AVCSM). Alguém que nos viu passar e soube do nosso desiderato, terá tido a boa ideia de informar a Senhora Presidente da Junta de Amarante que teve a amabilidade de comunicar à AVCSM e, eis 3 ilustres embaixadores que se nos apresentam a dar as boas vindas. A AVCSM dedica-se à organização de eventos, à promoção da região e, claro, ao apoio e divulgação do caminho de Santiago. Gozámos da sua boa companhia durante cerca de 2 horas até ao limite do concelho de Amarante, guiando-nos por entre vinhedos dispersos, num percurso ligeiramente desviado em pequenos troços do caminho de Torres, justificado, segundo eles, por acertos já consolidados.







Em Telões, tiveram os peregrinos direito a cerimónia de bênção pelo pároco Nelson Soares na bela Igreja românica do sec. XIII. Segundo informação do Daniel, arqueólogo de formação, o monumento terá sido originalmente erigido no sec. XI a mando de Murio Viegas, nobre cavaleiro do conde D. Henrique, progenitor do nosso primeiro monarca.

O pequeno almoço foi servido logo ali no café junto à obra de Murio, lauto, acompanhado, também, por vinho verde tinto e branco, ambos os dois de superior qualidade. O branco, em especial, mereceu mesmo rasgados elogios, ainda antes de se saber que fora produzido na quinta do senhor Padre Nelson.



Depois dos nossos novos amigos da AVCSM se despedirem e nos orientarem o caminho, limitámo-nos a seguir preguiçosamente as setas amarelas profusamente distribuídas. Salvo raras excepções em que o caminho nos levou por veredas estreitas sombreadas por compridas latadas, a aproximação à Lixa, o seu atravessamento e o último troço até Felgueiras é feito em espaço urbano e peri-urbano. Convenhamos: o troço não é dos mais agradáveis para quem prefere o espaço amplo e rural.




Ponto de interesse na Igreja de Caramos a que se acede por um pequeno troço de estrada romana em muito mau estado. Por entre várias localidades, trilho estreito até à Igreja matriz de Moure. As setas amarelas conduzem-nos numa espécie de slalom na malha urbana dos arrabaldes de Felgueiras até a um edifício que já albergou gente famosa: a domus municipalis. Fim de etapa. Próxima, a XIV: Felgueiras-Guimarães. 




Diário de Caminhada - ETAPA XII: Loivos do Monte - Amarante

“Da nossa casa a Santiago de Compostela”,

Etapa XII: Loivos do Monte - Amarante
16 de Novembro de 2013, sábado

Caminhantes: Anselmo, Benvinda Monteiro, Carlos Matos, Fernando Gaspar, Fernando Micaelo, Guida Mendes, Jaime Matos, Joaquim Branco, Luisa, Paula Marques, São Branco, Zé Manel Machado. No apoio, Piedade e João.

Sinopse:

Inicio em (perto de) Loivos do Monte: 08:30 horas
Distância percorrida: 17 km
Tempo total de caminhada: 05:20 horas
Tempo a andar: 04:22 horas
Tempo parado: 58 minutos
Velocidade média: 4,2 km/h
Da cota de 740 metros para 68 metros
Altitude máxima: 755 metros
Subida acumulada: 154 metros
Descida acumulada: 808 metros

Povoados e locais de referência ao longo do percurso: Noveleiras, Rechãozinho, Reboreda, Bailadoiro, Gualta, Vinhateiro, Matias, Corujeira, Amarante.


Acumulado:
Caminho: 304,2 Km
Bacias hidrográficas: Tejo, Zêzere, Mondego, Távora, Varosa, Douro, Tâmega.
Distritos: Castelo Branco, Guarda, Viseu, Vila Real, Porto.
Concelhos: Castelo Branco, Fundão, Covilhã, Belmonte, Manteigas, Guarda, Celorico da Beira, Trancoso, Aguiar da Beira, Sernancelhe, Moimenta da Beira, Tarouca, Lamego, Peso da Régua, Mesão Frio, Baião, Amarante. 

Fonte: GPS de Joaquim Branco
(ver track aqui)


Mal que batiam as 04:30 reuniu a fadistagem na rotunda da Mina. Viagem bem disposta, atendendo à hora, A23 acima até à Guarda, inflexão para oeste na A25 até Viseu, novamente para norte na A24 até ao Peso da Régua, N108 até Mesão Frio, N101 até ao cruzamento para Loivos do Monte/Baião. A estratégia de transporte e apoio implicou, comme d’habitude, um compasso de espera, pelos companheiros que foram parquear as viaturas a Amarante. Estava frio, bastante frio. Foi preciso aquecer a alma com uma jeropiga.


Início junto ao cruzamento para Baião às 08:30 com entrada imediata numa artéria peculiar, a começar pelo nome: Marquês de Pombal. Não, não era rectilínea e larga, acompanhava rudemente a N101, rodeando os acidentes orográficos que eram bastantes e pronunciados, característica, aliás, de toda a região (estamos a norte do Douro, numa região meio minhota meio transmontana, certo?); depois, a dita “rua” estende-se por cerca de mil vezes 3,5 metros, ao longo dos quais, tocam-na não mais do que uma dúzia de casas. Mas o que a torna única, mesmo única a sério, são as inúmeras pequenas cascatas de água que brotam por entre os penhascos de castanheiros, compondo a banda sonora da caminhada ao longo deste troço.

Quase sem nos darmos conta, fomos atravessando as “localidades” de Outeiro, Noveleiras, Rechãozinho, Almas, Reboreda, Vinhateiro, Bailadoiro, Cabana, Corujeiras, Gualta, Matias (não necessariamente por esta ordem). Pelas 6 horas perseguia-nos a serra da Abobereira, pelas 3 vigiava-nos o Marão. Passava das 10 quando, numa comprida mesa da esplanada do café simpático da localidade de Cavalinho, foi estendido o farnel e cada um alambazou-se com o que quis, desde que quisesse: pão, borrachões e bolacha do deserto (de Aldeia do Bispo), enchidos vários, paté de atum e delícias do mar, queijo fresco, queijo de mistura, azeitonas carrasquenhas retalhadas, azeitonas cordovil marteladas e aromatizadas com orégãos e alho, frango frito, febras aux vin, pezinhos de coentrada, moelas, bacalhau aux punheta, rissóis, feijão frade, papas de carolo, empadas de galinha, tinto do Micaelo, verde branco do Zé Manel, verde tinto da tasquinha servido em malga branca. Mesa farta e variada, pois.

Petiscou-se devagar, com vagar. Já mais compostinhos, prosseguiu-se. O vagar está associado à “slow food” (que nos seja perdoado o anglicismo), mas também ao acto em si de conhecer o país enquanto se caminha… com vagar. Forçando a analogia, sabe-nos melhor, faz-nos melhor, o “slow knowledge” (em português equivalerá a apropriação lenta de saber, suave, preciosista), facilitado pelo caminhar com tempo para permitir que o olhar se detenha nos pormenores, imperceptíveis de outra forma. Ao longo do caminho, temos confirmado a tese: a diversidade deste país é uma das suas maiores riquezas, nos usos e nos costumes, no sotaque, na gastronomia, na cultura em geral, na orografia, na flora, na paisagem; na marcação e apropriação do território também, como foi confirmado nas imediações de Amarante, e que nos tornou a mostrar o peculiar conceito de rua destas paragens. Já havíamos conhecido a rua Marquês de Pombal, as suas cascatas e as suas 10 casas em 5 quilómetros; agora caminhamos pela rua Souto Chão que ao longo de mais de 1000 metros às vezes em terra, outras vezes calcetada, serve 2 edifícios decrépitos consideravelmente distanciados, até à rua do Bandoleiro, agora já em alcatrão, subitamente continuada pela rua do Pedregal em calçada, com delimitação bem marcada no chão. Perguntámos a uma autóctone e eis a explicação: cada rua pertence a sua localidade. As autoridades administrativas de Jazente entenderam diferente das autoridades administrativas de Pedronelo, pelo que, do portão da vivenda Belinha para cima, Jazente mandou colocar alcatrão, daí para baixo mandou Pedronelo colocar calçada. E assim se evidenciou quem manda aonde.

Pedronelo orgulha-se da fama que tem o pão que aí é fabricado. Na padaria, após alguma insistência no chamamento, a padeira assoma a uma janela:
- querem pão? cheguem ali e desandem aquela porta que eu já lá vou”.




Inteirando-se da nossa condição, e antes de saber a encomenda, a simpática pedronalense logo fez questão de oferecer 3 pãezinhos de quartos, atitude que os caminheiros acharam muito correcta, comprando-lhe 3 casqueiros dos grandes, em compensação.



A entrada em Amarante é feita, obviamente, pela ponte de S. Gonçalo. Reza a história que foi o próprio que tratou de reconstruir a velha ponte romana que constituía (e constitui) uma importante via de ligação entre o sul e o norte, em direcção a Guimarães, Braga e, naturalmente, Compostela. Embalado, terá mandado também erigir, junto à ponte, a ermida que haveria de ser transformada em Igreja com o seu nome. Pese embora Frei Gonçalo nunca tenha sido reconhecido como santo pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana, mas “apenas” como Beato, a verdade é que o povo, seguramente em consideração ao seu fervor (e dinâmica edificadora), tratou de o canonizar como tal, envolvendo-o em lendas e histórias que lhe atribuem feitos ímpares com as raparigas e não só. A cultura popular mais brejeira e brincalhona valia-se da capa protectora de S. Gonçalo para atacar preconceitos e tabus em tempos de repressão, única forma de contextualizar quadras como esta:

S. Gonçalo de Amarante
Casai-me que bem podeis
Já tenho teias de aranha
Naquilo que vós sabeis.

Havia feira de antiguidades no adro. Ainda antes do lauto almoço nas imediações do rio (o cardápio era o mesmo do pequeno almoço), os peregrinos fizeram questão de ir tocar o túmulo do santo padroeiro e, saudar o colega Santiago na capelinha lateral da Igreja.





Amarante é terra natal de ilustres figuras da literatura e das artes portuguesas. Amarantinos são Amadeu de Souza-Cardozo, Agustina Bessa Luís e Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos que preferiu ficar conhecido como Teixeira de Pascoaes. Das pesquisas efectuadas – pois, o Caminho, essa via de conhecer mais e mais devagar o país, inclui passear pelas referências locais, consolidámos a nossa simpatia pelo Pascoaes arauto do bucolismo da ruralidade, pré-ecologista, mas já não tanto pelo Pascoaes perdido nas teias do saudosismo, com as conotações imobilistas e excessivamente nostálgicas que ele parece ter querido dar ao conceito de saudade. Gostariamos, mas não o conseguimos, de ter ficado definitivamente esclarecidos sobre a disputa intelectual que ele travou com António Sérgio relativamente à exclusividade da saudade portuguesa, ideia que corre e vingou no imaginário apologético nacionalista. Dever-se-á, muito provavelmente ao contributo de Pascoaes, essa ideia que nos levaram a interiorizar de que o sentimento associado à saudade é excepcional nos portugueses e que mais nenhuma língua no mundo traduz com a mesma força tal sentimento. Sérgio terá chegado a ser indelicado com o amarantino desmontando essa genuidade e exclusividade, argumentando que a palavra existe com o mesmo significado em várias línguas, até em islandês, onde assume a forma de saknaor. Não sabia António Sérgio, não podia saber, que os islandeses quase um século depois haviam de cortar radical e definitivamente com um certo saknaorismo que os governava. Adiante.

O final de tarde e noite foi gasto pelos peregrinos entre tabernas, socializando com os autóctones disponíveis. Esta opção implicou um custo de oportunidade: escasseou o tempo para visitar o excelente museu Amadeu de Souza-Cardoso. Primeiro, foi a taberna do Rodrigo, pequeno e acolhedor entreposto de venda de variadíssimos enchidos e presuntos regionais, cujas paredes e mesas estavam forradas com papéis avulsos nos quais os clientes deixam mensagens, poemas e outros dizeres. Depois, foram os peregrinos buscar o reforço alimentar da noite na Taberna das Comadres, ali a dois passos do Tâmega, rebuscado com sopinha de feijão, couve esfarripada e batata ralada com garfo, ameijoa à moda das comadres, tripas à moda das comadres, “verde” (bifinhos de porco longamente alagados em vinha d’alho e pimenta e depois fritos em azeite), pastéis de bacalhau enrolados pelas comadres, pastelão (espécie de omolete), verde (vinho) branco e tinto a gosto (alguém contou meia dúzia de garrafas despejadas).

O anfitrião, homem afável, conversador, visual de baterista de banda de rock pesado com rabinho de cavalo e tudo, tratou-nos bem e terá gostado da nossa companhia. Se calhar por isso é que quando se lhe pediu um chá para “compor” o organismo, ele perguntou:
- É para compor? Então vão beber um chá especial, ofereço eu.
A cor era parecida com o chá de tília e carqueja misturados; os ingredientes é que derivavam para aguardente caseira envelhecida e embebendo uma cereja de Resende. 

Compostos, os peregrinos recolheram à Casa de Cultura e Juventude de Amarante, situada na margem esquerda do Tâmega, local que se recomenda a grupos não muito exigentes, com condições extraordinárias, mesmo em regime de quarto quádruplo com beliche, preço justo. Amanhã, Amarante – Felgueiras.