quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Banda Sonora para um Caminho - VI


INSTANTÂNEOS - IX

A etapa estava já a terminar sem que tivesse ocorrido episódio digno de instantâneo. Até que se chegou a Pedronelo, já com Amarante à vista. Numa curva, surge, imponente e vistosa, uma vivenda bem traçada arquitectonicamente. Vários pormenores chamaram a atenção dos peregrinos. O primeiro, logo notado por apreciador convicto, era o telheiro que abrigava a barbacoa, em telha de meia cava, armação em madeira tratada, forno, churrasco e bancadas em materiais de primeira; depois, as persianas, todas em dourado brilhante conferiam-lhe um aspecto, digamos, nobre; terceiro, o largo varandim que a circundava, assim à moda da mansão brasileira; por último, à volta da mansão, numa área de uma centena de metros quadrados, em plano inclinado, em vez de relva, pedras roliças e seixos.

Espalhadas pelo peculiar quintal, erguiam-se várias estátuas, completamente pintadas de branco, algumas delas a jorrar água em prateados pequenos repuxos. Seguindo o nosso instinto, tratámos de meter conversa com o proprietário que nos avaliava desde o varandim e, apontando uma figura masculina trajada à moda do Renascimento - gola rendilhada à volta do pescoço, jaqueta sem mangas, calças (agora parece que lhe chamam leggins) muito justas com ostentação despurada do contorno dos genitais, sapatos largos encimados por grandes fivelas:

- Santas tardes, então quem é que está ali naquela estátua?
- É o D. Afonso Henriques – informou solícito.

Armados em sabichões, ensaiámos a correcção:

- Não pode. A vestimenta não é bem a da época do nosso Fundador.

O pedronalense senhor nem vacilou:

- Ai isso é que é! Atão eu não sei? Olhe que eu tenho a 4ª classe antiga, meu amigo, e conheço bem os nossos reis.

Já bastas vezes tinhamos ouvido os nossos pais argumentar que a 4ª classe antiga é que era, que quem a fez sabe mais do que muitos doutores. O entusiasmo com que foi feita a defesa da tese, desarmou-nos sem apelo nem agravo.
Metemos o rabinho entre as pernas e prosseguimos rua abaixo a ver do S. Gonçalo.


Diário de Caminhada - ETAPA XIV: Felgueiras - Guimarães

“Da nossa casa a Santiago de Compostela”,

Etapa XIV: Felgueiras - Guimarães
11 de Janeiro de 2014, sábado

  
Caminhantes: Anselmo, Benvinda Monteiro, Carlos Matos, Fernando Gaspar, Fernando Micaelo, Guida Mendes, Jaime Matos, Joaquim Branco, Luisa, Paula Marques, São Branco, Zé Manel Machado. No apoio, Piedade.

Sinopse:

Inicio em Felgueiras: 08:20 horas
Chegada a Guimarães (Praça de Santiago): 15:00
Distância percorrida: 21,5 km
Tempo Total 6:41;
Tempo parado 1:37;
Velocidade média 4,2 Km/h.
Povoados e locais de referência ao longo do percurso: Felgueiras, Mosteiro do Pombeiro, Ponte do Arco, Ciclovia (Fareja-Guimarães), Guimarães.


Acumulado:
Caminho: 346,7 Km
Bacias hidrográficas: Tejo, Zêzere, Mondego, Távora, Varosa, Douro, Tâmega, Vizela/Ave.
Distritos: Castelo Branco, Guarda, Viseu, Vila Real, Porto, Braga.
Concelhos: Castelo Branco, Fundão, Covilhã, Belmonte, Manteigas, Guarda, Celorico da Beira, Trancoso, Aguiar da Beira, Sernancelhe, Moimenta da Beira, Tarouca, Lamego, Peso da Régua, Mesão Frio, Baião, Amarante, Felgueiras, Fafe, Guimarães. 

Fonte: GPS de Joaquim Branco
(ver track aqui)

A etapa nº 14 fica marcada por uma mudança de estratégia no que toca a deslocações e apoio: em vez dos 3 automóveis habituais, os peregrinos foram todos em excursão num mini autocarro alugado. O apoio durante as etapas esteve igualmente assegurado com uma paragem para pequeno almoço. Feitas as contas, fica mais barato e, claro, muito mais confortável. As despesas da viagem até Felgueiras foram pois transferidas para o senhor condutor, facilitando a vida aos peregrinos que se dedicaram à confraternização e, nos intervalos, a dormitar.


A Câmara Municipal de Felgueiras prestou-se a enquadrar o grupo. Antes do tiro de partida às 08:20, Xquim Branco fez entrega das cadernetas que um dia havemos de exibir aos nossos netos, como comprovativo desta nossa aventura.

O percurso leva-nos a uma passagem pela Matriz da cidade e em seguida encaminha-nos em direcção ao majestoso mosteiro de Santa Maria do Pombeiro, um edifício imponente que remonta ao sec. XI, estilo românico na base, nave ampla, vários altares em talha trabalhada e rendilhada. Consta, obviamente, da lista de monumentos nacionais. Após a recolha do carimbo, prosseguimos para a ponte romana do Arco que nos havia de deixar passar para a margem direita do rio Vizela. Três centenas de metros antes, já com o som das águas do rio, nota para a casa das Carrancas na Boavista, assim chamada por via das carantonhas que exibe na frontaria de granito.



Duas notas, à volta de cada margem do Vizela. Na esquerda, mesmo junto à ponte puderam os peregrinos visitar um moinho em plena laboração, a convite do moleiro, um rapazinho ainda novo. Nos seus tempos áureos, condicionada pela levada ainda bem visível, a força bruta das águas do Vizela faziam rodar o rodízio que fazia girar as mós, que moíam o grão; agora e naquele momento, era o interruptor eléctrico na posição de ligado que fornecia a energia para o mesmo efeito. Já na margem direita, na localidade de Serzedo, infirmou-se finalmente a tese de que os minhotos não são gente hospitaleira. Picada pelo nosso Zé Manel, a minhota Sra Conceição insistiu veementemente com os peregrinos para que bebessem um portinho dos seus. Fizeram-lhe os peregrinos a vontade. Ela havia de cantar os Reis à moda do Minho, tendo nós retribuído com as janeiras à moda da Beira Baixa (acompanhadas com realejo e tudo). A hospitalidade, simpatia e boa disposição valeu-lhe para lhe perdoarmos que ela não soubesse e não se lembrasse de ter ouvido nunca o que era isso da Beira Baixa, ou de uma cidade chamada Castelo Branco. A explicação do nível de ignorância, tê-la-á dado a própria quando invocou por 3 vezes o Manuel Goucha como referência para 3 temas.



Cinco minutos à frente, pequeno almoço. Para registo histórico - e apenas para esse efeito - aqui fica o cardápio (desta e de todas as refeições de ar livre nas etapas XIV e XV): pastéis de bacalhau (dos verdadeiros); frango à brás; febras palitadas com picles; azeitonas de várias qualidades e tempêros; queijos: fresco, picante, mistura, beira baixa de ovelha à cabreira, Seia; javali no forno; moelas; presunto: em guitarra e fatiado; chouriço; chouriça; farinheira fumada e frita; morcela; salada de polvo; peixe frito; frango frito panado; pastéis de carne; empadas; pão de mistura; pão centeio; bolacha do deserto; arroz doce; bolo de cenoura com chocolate; filhós; ananaz; tangerinas; maçãs; bica doce; pão de deus; marmelada dura e mole; bolos secos, vinhos de vários cores e sabores, verdes e maduros mas todos autênticos néctares dionisíocos, suminhos.


Repostos os níveis, atacou-se a subida por Serzedo às endireituras da ciclovia que foi instalada por cima do antigo ramal ferroviário que ligava Guimarães a Fafe. Passeio agradável em piso alcatroado, em bom estado, nivelado, que se estende por quase uma dezena de quilómetros, com passagem pelas antigas estações de Paço Vieira e Mesão Frio, até à cidade berço.


O castelo havia de ser conquistado pelo norte, sem grande resistência. Depois do inevitável registo daguerreotípico com o nosso primeiro Afonso como testemunha, visita ligeira, em dia de entrada livre, ao Palácio dos duques de Bragança, onde os peregrinos beneficiaram ainda como bónus de uma breve sessão teórica sobre essa nobre e antiga arte de treinar e cuidar falcões e outras aves de rapina na actividade cinegética, que é como quem diz em falcoaria, ou, mais erudito, em cetraria. Um simpático cavalheiro, braço esquerdo alçado, luva de cabedal a proteger a mão das garras de um garboso falcão fêmea, foi respondendo a todas as perguntas compenetrado de quem sabia do que estava a falar. Esboçou um difícil sorriso apenas quando, questionado sobre o comportamento das aves, informou que na sociedade dos falcões, a fêmea é que vai à caça enquanto o macho fica de guarda.



Do castelo, descida ao largo da Mumadona até à Praça de Santiago. Etapa concluída.

Depois de degustado o almoço tardio nas instalações do Hostel Santiago (repetição de cardápio), a tarde foi dedicada a apreciar a zona histórica de Guimarães e a confirmar a sua harmonia arquitectónica. Uma jóia, inquestionavelmente. Naquela noite, sorte nossa, era noite de cantar os reis. Logo ali ao lado, no Largo da Oliveira, o povo saiu à rua e acorreu a ver e ouvir a dezena de grupos musicais oriundos de várias freguesias do concelho de Guimarães que cumpriram a tradição de cantar os reis. Mesmo antes de recolher, ainda houve tempo para assistir, agora na Praça de Santiago, à performance inusitada de uma bruxa a tocar violino numa varanda. Para o quadro ficar completo, só faltava o elemento moderno na noite vimaranense, e esse estava mesmo por baixo da nossa janela: rompendo corajosamente a penumbra do bar, fazia-se ouvir, forte, o rufar ritmado acompanhando o trinar destorcido das guitarras roqueiras.




Amanhã, havemos de ver Braga.